segunda-feira, 2 de março de 2009

Entrevista para o Jornal O Povo


1. Para começo de conversa, queria que você me falasse como foi que ficou amigo do Patativa. Você era um jovem envolvido com o movimento cultural do Crato, numa época emblemática. Como se dá, então, o encontro desse jovem com o poeta velho que canta os anseios da juventude?

R – No Crato, no início da década de 1960, meu pai era dono de uma bodega, e o meu avô era dono do Bar Tupy. Esses dois locais eram pontos de encontro de muitos artistas populares que vinham para a feira, também de operários e boêmios, que ficavam à noite discutindo política e as notícias que ouviam no rádio de ondas tropicais que meu avô mantinha no seu estabelecimento. Ali conheci Cego Oliveira, Cego Heleno, Dona Ciça do Barro Cru, Severino do berimbau de lata, Mestre Aldenir, Zé Gato, Azuleica, os irmãos Aniceto e outros grandes artistas populares. Entre eles, conheci Patativa do Assaré, que era amigo do meu pai e freqüentava sempre o Bar Tupy. Eu gostava de ficar ouvindo-o recitar para os feirantes e, como ele sabia do meu interesse por literatura, por poesia, fizemos esta amizade, desde esse tempo, quando eu ainda menino. Muitas vezes, convidado pelo meu pai, ele ia almoçar na minha casa e lá ficava contando causos, recitando poemas. Tanto meu pai, como o meu tio Jetro, gostavam muito de poesia e de literatura de cordel, de histórias engraçadas, de causos. Esta foi uma escola importante para mim. A minha primeira produção artística foi em 1969, quando fui presidente do “Grêmio Estudantil Sagrada Família”, no Seminário do Crato e lá organizei um Festival de Cultura Popular do Cariri, no qual Patativa se apresentou recitando, ao lado dos Irmãos Aniceto, do Cego Heleno, do Cego Oliveira, de Zé Oliveira e de outros artistas. Era tudo muito organizado, com cenário, som de boa qualidade, iluminação, bilheteria etc. A qualidade artística e técnica, porém, não impediu que o espetáculo desse um prejuízo danado. O meu pai teve de pagar a conta. Meu pai sempre “brincava” comigo, ficava rindo, lembrando este episódio da minha “primeira produção artística”. Este acontecimento inicial iria ter uma influência muito grande sobre os futuros movimentos culturais do Cariri e em Fortaleza, em relação à valorização e projeção da cultura popular, a partir de uma nova geração. Desde o início, Patativa surgiu como um mestre, uma voz rebelada, que preenchia os anseios dos artistas adolescentes da periferia do Crato. Eu morava na periferia, na ladeira do seminário.


2. A partir dessa amizade, foi você, Rosemberg, quem ajudou a mostrar o Patativa ao Ceará urbano que só olhava para a Europa. Os movimentos de 1970 para Fortaleza foram como um movimento modernista? Ou seja, forçou a cidade a olhar para si mesma e para o interior do Ceará?

R – No ano de 1970, fui estudar em Ouro Preto, em Minas Gerais. Esta viagem foi importante, pois entrei em contato com a riquíssima diversidade cultural e a contemporaneidade internacional do Festival de Inverno de Ouro Preto. Vi muito da vanguarda que se fazia no Brasil e no mundo. Voltei para o Crato, em 1972, cheio de idéias, e organizamos o “Grupo de Artes Por Exemplo”, na periferia, que editava uma revistinha mimeografada, fazia teatro, cinema super-8, recitais e performances muito ousadas para a época. Estreitamos nossa amizade com vários artistas populares, entre eles Patativa, que sempre convidávamos para participar das nossas atividades. Patativa (sempre zeloso na métrica e nas rimas) parecia divertir-se muito com aquilo tudo (ele adorava os versos “surrealistas” e experimentais de Geraldo Urano e as performances que fazíamos). Ao lado de jovens compositores, Patativa realizou recitais no Salão de Outubro, em praças públicas. Ele foi muito próximo desta geração que, no Cariri, fazia arte de vanguarda, amava os Beatles, os Rolling Stones, a contracultura norte-americana, as contestações e a “marginália”. Este grupo aproximou-se da cultura popular por questão de vivência e inserção no “caldo cultural” local, mas também impulsionado pelas visões da contracultura. Para nós, Cego Oliveira era como os primitivos cantores de blues do Alabama e Patativa do Assaré era o nosso Atahualpa Yupanqui. Vivíamos assim um clima de tradição e modernidade, de continuidade e ruptura, de regionalidade e de universalidade, ao mesmo tempo. Um período muito agitado, muito vivo e cheio de sonhos irrealizáveis, em plena ditadura militar. Quando eu chego a Fortaleza, a partir de 1976, participo de movimentos coletivos como o “Nação Cariri”, a “Massafeira” e o “Siriará”. Junto comigo, trago toda esta experiência coletiva do Cariri e abro caminho para estes mestres da cultura popular da região, sobre os quais, junto com Oswald Barroso e Firmino Holanda, escrevemos em jornais, produzimos recitais, discos e filmes. A chegada dos artistas populares à Fortaleza que, como entreposto comercial da elite litorânea, menosprezava o sertão equivale, simbolicamente, a uma segunda “Sedição de Juazeiro”, quando, em 1914, os romeiros do Padre Cícero invadiram Fortaleza. Significa, simbolicamente, uma “Confederação dos Cariris”, uma nova “invasão dos bárbaros”. Toda essa valorização da cultura popular nos dias de hoje deve muito a este tempo de “cultura insubmissa”. É preciso não esquecer que os nomes mais significativos da música cearense naquele momento, como Fagner, Ednardo, Belchior e Fausto Nilo chegaram também do interior, do sertão. No teatro, na música, na dança, no cinema, no jornalismo, nós encontrávamos os que chegavam do sertão. E o mar virou sertão.


3. Você já chegou a dizer que agora Patativa é querido por todo mundo, mas em algum momento a poesia popular dele não era bem vista pelos eruditos. O que mudou?


R
– Patativa do Assaré é Antônio Gonçalves da Silva, um humilde camponês da Serra de Santana. Saído da pobreza, padeceu fome nas grandes secas, viu muitos dos seus filhos morrerem e sofreu muito como roceiro, mal ganhando com que sustentasse a sua família, daí fazer cantoria de viola, como forma de ganhar algum dinheiro extra. Patativa foi um autodidata. Depois de algumas aulas com um mestre-escola, durante poucos meses, aprendeu a ler sozinho e depois leu os grandes clássicos da literatura. Havia um preconceito muito grande com o que era considerado popular, pela cultura do povo. Os intelectuais cearenses, afastados da realidade e da cultura do seu povo, viram em Patativa, inicialmente, apenas mais um “cantador” de viola, um poeta matuto, um analfabeto, um cego de feira, um aleijado. Então Patativa se fez, construiu-se, atraiu a atenção de todo o País sobre a sua poesia. Isto começou a mudar com as apresentações de Patativa em Fortaleza, com sua presença em jornais e revistas literárias feitas por jovens, com as publicações dos seus livros, por editoras de circulação nacional, a partir da década de 1970, e do reconhecimento do seu nome por importantes críticos literários e personalidades da vida pública brasileira. A partir de 1989, Patativa se fez presente nos grandes movimentos políticos e sociais que conquistaram para o Brasil a volta das liberdades democráticas. Na década de 1980, Patativa do Assaré já simbolizava, para os jovens nordestinos, um poeta de expressão nacional, uma voz da resistência e das lutas libertárias. Ele se transformou em um patrimônio cultural e afetivo do povo nordestino. Suas canções foram gravadas por importantes nomes da MPB, seus livros tiveram sucessivas reedições, seus shows e recitais eram acontecimentos culturais da maior importância. O encontro de Fagner com Patativa foi muito positivo para os dois, gostaria de deixar isto registrado. O reconhecimento fora do Ceará, e também no exterior, levou a intelectualidade cearense a estudar a obra de Patativa e a melhor compreendê-lo. Digo isto, mas sempre houve exceções, um ou outro literato ou estudioso que bem antes reconheceu em Patativa a excelência literária. Na década de 90, Gilmar de Carvalho deu importante contribuição no estudo e na difusão da obra de Patativa.
O tempo trouxe novas percepções. Mudaram as formas de ver Patativa do Assaré. Acho que o Patativa vai ser sempre assim: um poeta de uma grandeza tamanha que vai gerar múltiplas interpretações. A compreensão ecológica, a consciência política, o poeta extraordinário, de enorme sensibilidade no trato com a compreensão da alma humana, o cronista dos costumes do sertão etc. Cada um vai destacar o que lhe toca a alma. Há uma representação do Patativa, que é muito dura, concreta, de quem viveu aquele sofrimento todo narrado nos seus poemas, mas há uma outra dimensão mais interna, de quem viveu dentro do sertão e teve o sertão dentro de si, como representação do mundo. Há o poema dele que diz que as almas boas ficam pela terra, fazendo caracol sobre o sertão, levantando a poeira dessa terra. Uma forma telúrica e, ao mesmo tempo, cósmica. Percepção parecida com a de Guimarães Rosa. Agora, uma dimensão pouco conhecida é a do Patativa religioso. Ele tinha noção, muito consciente, da grandeza da sua arte. Sempre se considerou, de certa forma, um instrumento de Deus. É como se fosse apenas um instrumento de uma vontade muito maior. Daí, talvez, a sua aparente humildade. Patativa do Assaré teve em vida o que muitos poetas, mesmos os mais reconhecidos e laureados, gostariam de ter tido: o reconhecimento, o carinho e o amor do seu povo. Sua poesia está em todas as bocas, de jovens e de velhos, no sertão e na cidade, como bandeira de luta e emoção maior, influenciando gerações.


4. Quem era Patativa? (Essa pergunta diz respeito ao conhecimento que você, Rosemberg, como homem, tinha de Patativa, alguém com quem você conviveu de perto e conhecia mais do que o que aparece na mídia. Essa pergunta fala dos aspectos humanos, reais, que formavam o ser Patativa).


R
– Quando falamos de Patativa, todos nós, que tivemos o privilégio de viver a amizade do poeta, falamos mais do “mito” do que do homem. Tudo passa pelo filtro da memória e, muitas vezes, reinventamos sombras na expectativa de desvendar verdades, ou o que pensamos ser verdades, dentro da nossa subjetividade, são interpretações da realidade aparente. Lembro-me de todos os acontecimentos públicos, quase épicos, do grande poeta. Do homem mesmo, de Antônio Gonçalves da Silva, o que eu me lembro? Da sua luta para deixar de fumar. Apostei com ele que deixava de fumar e deixei, ele nunca conseguiu. O tempo em que bebia, sentando-se à mesa do Bar Tupy, recitando poemas, não só sociais, mas também satíricos e eróticos. Das visitas que ele fazia ao meu pai, das conversas, dos causos contados, dos risos generosos. Do seu caráter forte, do seu código de honra severo, da autoridade forte na educação dos filhos. Uma graça: a sua imensa alegria em brincar com as crianças, em contar as tiradas inteligentes das crianças, em contar pequenas brincadeiras dos seus netos e afilhados. A Bárbara e Maíra, minhas filhas, eram muito queridas por ele. Sempre que me encontrava, Patativa me perguntava o que elas tinham dito de engraçado ou que tinham feito de interessante. Depois, ele sai recontando estas histórias e sempre ria muito. O mesmo acontecia em relação aos filhos de outros amigos. Quando estava zangado, era duro e não gostava que ninguém o fizesse de bobo. Não podemos esquecer também a sua generosidade, nunca explorou comercialmente a sua poesia, dava de graça versos seus para jovens compositores musicarem, era paciente com os pretendentes a “poetas”, convivia pacificamente com os poetas ditos modernos ou com as experiências mais radicais da vanguarda. Quando morreu Dona Belinha, sua esposa, ele sofreu muito, entrou em depressão, mas nunca abandonou a poesia. É interessante lembrar que Patativa quase não tem poemas de amor, no entanto, a sua dedicação a Dona Belinha, sempre me pareceu maior do que aquilo que um poema de amor pode expressar. Acho que ele, ao decidir entre “falar de amor” e “viver o amor”, preferiu a segunda opção. Acho eu, o certo é que ele quase nunca falava de amor romântico. Uma coisa de que ele não gostava: quando os amigos casados se separavam, porque ele perdia a amizade destas mulheres que terminavam por se afastar do seu círculo de amizade.


5. Como era o Patativa político?


R
– Patativa nunca foi um político partidário, a sua visão de política era mais ampla e se confundia com a ética, com o sentimento de justiça, com o seu cristianismo radical, próximo de um comunismo primitivo e panteísta. Ele tinha uma visão muito crítica da sociedade e das injustiças impostas, das opressões que sofriam os camponeses e os operários, mas, no fundamento disto, estava o homem. É claro que Patativa participou, como simpatizante, das “Ligas Camponesas”, manteve contato com lideranças camponesas e operárias ligadas aos partidos de esquerda. Depois Patativa se aproximou muito dos jovens que militavam no PCdoB, como Inácio Arruda e os artistas do “Nação Cariri”. Patativa subiu em palanques pela anistia, pelas eleições diretas e por muitas outras mobilizações sociais que considerava justas. Uma única vez participou de uma campanha partidária, em 1986, no movimento “pró-mudanças”, que coligou o PMDB, PC do B, PCB e PDC. Esta coligação derrubou os coronéis e elegeu o Tasso Jereissati, como Governador do Ceará, empossado em 1987. O Tasso, independente de qualquer viés ideológico, tornou-se um grande amigo de Patativa e chegava mesmo a se aconselhar com ele. Acho que, para o Tasso, Patativa era o arquétipo do velho sábio. Entre os seus amigos políticos, figuravam pessoas como Eudoro Santana, Inácio Arruda, Miguel Arraes, Violeta Arraes, Iranildo Pereira, dr. Raimundo Bezerra e dr. Landim, entre outros. Ele admirava muito Darcy Ribeiro e ficou muito contente no dia em que se encontrou com o grande antropólogo e político brasileiro. Darcy ficou comovido ao ouvir Patativa recitar. Na verdade, os dois ficaram emocionados, tratava-se do encontro de dois homens apaixonados pelo Brasil e pelo povo brasileiro. Eu guardo também nos meus arquivos um poema que Patativa fez para o Lula na campanha de 1987, uma peça rara de consciência histórica e política. Vou dar este vídeo de presente para o Lula. Acho que foi a única vez em que Patativa gravou um vídeo pedindo voto para um candidato e a segunda em que participou de uma campanha eleitoral, mesmo sem subir nos palanques.


6. Patativa está longe de ser um poeta engajado. Ele canta algo universal. Havia a situação, mas ele cantava o homem. Como a poesia de Patativa ganhou a força que ela tem hoje?


R – Patativa era um poeta engajado, 24 horas por dia, no seu humanismo radical e na sua imensa sede de justiça e de liberdade. Isto é universal. Este é o Patativa que trago na memória e a quem sempre presto a minha homenagem. A grande visibilidade do Patativa acontece no período que vai da década de 1970 ao final da década de 1980. Acho que a publicação do livro “Cante Lá que eu Canto Cá”, por iniciativa do Plácido Cidade Nuvens, foi muito importante. Ele aparece para o grande público junto com a luta pela Anistia, pelas Diretas Já. Patativa aparece no processo de redemocratização do País, como poeta de um povo, como poeta de um sonho de liberdade. Porque, naquele momento, historicamente, necessitava-se de uma voz coletiva. A participação de Patativa no Congresso da Sociedade Brasileira para Progresso da Ciência - SBPC, na “Massafeira”, no show “Canto Cariri” do Grupo Siriará, e nos muitos shows que realizou com Fagner, também importantes. Oficialmente, a partir de 1987, quando a Violeta Arraes foi secretária de Cultura, o Estado do Ceará reconheceu a importância de Patativa. A sua intensa participação, no momento histórico em que se realizavam as lutas pela redemocratização do País, também alargou a influência da sua poesia, e ele se tornou um nome nacional. Começou mesmo a ter os seus poemas traduzidos para outros idiomas.


7. O que Patativa do Assaré significa para a cultura brasileira?


R
– A alma de uma nação é feita pelo povo e pelos grandes homens, sejam eles cientistas, políticos, líderes populares, músicos, místicos, artistas que expressam os sentimentos do povo. Patativa é parte da alma mais profunda da nação brasileira, é um dos grandes poetas da literatura nacional, é uma sensibilidade artística extraordinária, é parte da consciência política, social e histórica do povo brasileiro. Se o Brasil não tem ainda o seu poeta-nacional, que simbolize e expresse o sentimento de nação, como Garcia Lorca na Espanha, Pablo Neruda no Chile, Agostinho Neto em Angola, Camões em Portugal ou Nazin Hikmet na Turquia, o Nordeste brasileiro, popular e rebelado, tem o seu: Patativa do Assaré. Patativa do Assaré já figura entre os grandes nomes da poesia do Brasil e da América Latina por ter conseguido, com tanta arte e beleza, unir a denúncia social com o lirismo, a consciência política com a percepção humana mais profunda, o amor à natureza com o misticismo libertário. Aço e rosa. Quem lê a poesia de Patativa pensa, emociona-se e se transforma, porque nela estão todas as lutas e esperanças do homem, estão as palavras que se erguem com a dignidade dos justos. Reafirmo: é preciso um século inteiro para plasmar gênios como Patativa do Assaré. O século XX deu esse presente ao Brasil. É claro que o povo fica vaidoso com este presente.


8. Patativa foi cantado por Luis Gonzaga, Fagner, Abdoral Jamacaru, foi lançado no Brasil pela editora Vozes, teve muitos outros livros publicados. Como tudo isso mudou a realidade do próprio Patativa? Que força ele foi ganhando? Como sua poesia e sua performance foi quebrando barreiras para sua fala e para a temática que ela simbolizava?


R – Fala-se muito da modéstia de Patativa. Camponês, humilde e pobre, Patativa sempre teve consciência do seu real valor. Ele era uma pessoa muito inteligente, muito “antenada”. Nunca deixava que o enganassem. Ele sempre teve os parceiros que quis ter, sempre esteve nos palcos que escolheu, sempre soube o mínimo detalhe de cada contrato que assinou. Também tratava a imprensa de forma muito especial. Ele fazia com que a imprensa sempre reproduzisse o que ele queria dizer e, algumas vezes, muitos dos seus recados eram dados por meio da imprensa. Patativa chegou mesmo a virar um fenômeno de comunicação. Um “pop estar”, um querido da mídia. À medida que crescia o seu nome e a influência da sua poesia, mais ele se conscientizava do papel que estava jogando naquele momento histórico. Patativa fazia uma distinção entre o camponês pobre Antônio Gonçalves da Silva e o poeta famoso Patativa do Assaré, ele sabia zelar e defender esta imagem pública. No entanto, ele jamais deixou que a fama lhe subisse à cabeça. Por acreditar que a sua inspiração era um dom divino, ele não fazia comércio da sua literatura, deixava sempre as pessoas interessadas estipularem o preço que queriam pagar por um recital, por exemplo. O dinheirinho que ganhou nesta época ele investiu comprando uma casinha em Assaré, pois Dona Belinha, sua esposa, muito religiosa, sempre sonhara em morar com ele, próximo de uma igreja, e também na educação dos netos. Ele queria formar todos os netos, era o seu sonho. Na década de 1980, Patativa já tinha uma imensa experiência de palco e no tratamento com o público. Acho que isto ele aprendeu com o tempo, com as apresentações que realizou por todo o País. Ele sabia até mesmo onde fazer pausa, para que os aplausos viessem. Acho que nenhum poeta neste país teve a popularidade de Patativa. Ele sabia recitar e comovia o público até as lágrimas, ou sabia fazê-lo rir quando a situação exigia. Era um mestre da palavra e dos sentimentos.


9. O que você planeja ainda sobre Patativa?


R – Tenho proposto, em várias entrevistas e em visitas que tenho feito às autoridades, a construção do “Mausoléu Patativa do Assaré”, como símbolo concreto, como forma de perpetuar tão grande poeta que já mora no coração do povo. A idéia é bem simples. No pontão da Serra de Santana, onde nasceu e viveu Patativa, avista-se um bonito vale, onde está situada a cidade de Assaré. A idéia é cortar um dos imensos monólitos ali existentes na forma de um cubo (como a Kaaba, a pedra sagrada dos muçulmanos). Este imenso cubo de pedra será revestido com granito preto. Na própria pedra, será aberta uma cavidade, onde serão depositados os restos mortais de Patativa e de Dona Belinha. Apenas uma placa de bronze anunciaria o jazigo perpétuo. Seria um lugar bonito, com um jardim feito da flora caatingueira, um jardim Zen, onde se poderia contemplar a natureza e se fazer meditação. Talvez próximo se pudesse erigir uma capelinha de pedra, em estilo românico, de linhas austeras. Este local seria um templo da poesia do povo brasileiro.


10. Rosemberg, ainda é válido falar de cultura popular? Não existiria apenas a cultura e suas manifestações?


R – Se pensamos o homem que habita o pequeno planeta que chamamos Terra, como pertencente a única humanidade, sim, poderemos falar da cultura humana. Se levarmos em conta os povos, geograficamente e historicamente situados, em diferentes processos civilizatórios, com as suas cisões provocadas pelas economias, pelas divisões em classes sociais, pelas ideologias, pelas crenças, pelas diferentes visões de mundo, então podemos falar em culturas. Lembro-me de que, no Crato, na década de 1970, quando fazíamos o “Grupo de Arte Por exemplo”, nunca fazíamos esta divisão. Conviviam, lado a lado, o mais radical dos artistas da classe média, “antenado” com a vanguarda dos centros urbanos internacionais, com o mais tradicional artista de Juazeiro. No “Salão de Outubro”, expunham de Luiz Karimai a Mestre Nino, Walderedo Gonçalves e Geraldo Urano. Nos shows, participavam da orquestra de padre Ágio, de formação erudita, à banda de pífanos dos irmãos Aniceto, de Patativa do Assaré a Abdoral Jamacaru, de Jefferson de Albuquerque Jr. a Mestre Aldenir, de Zé Gato a Luiz Carlos Salatiel, de Cleivan Paiva a Severino do berimbau de lata. Era um grande encontro de diferentes classes, de diferentes níveis, de diferentes origens, fazendo uma só coisa: cultura. As diferenciações entre cultura popular e erudita, entre cultura de massa e cultura nacional, surgiram para nós nos embates travados pelo jornal e movimento “Nação Cariri”, acredito que com alguma influência dos debates dos CPCs da década de 60, dos movimentos de libertação nacional na África e na América Central, dos conceitos de esquerda, então em voga. Foi um debate intenso, interessante. Acho que o reconhecimento do que hoje chamamos de “cultura popular cearense” se deve muito ao que se fez naquela época.


SOBRE O FILME Patativa do Assaré, Ave Poesia

11. O filme, que será lançado dia 3, em Fortaleza, é o resultado de décadas. Como esse filme foi sendo construído?


R – Estamos lançando nacionalmente o filme “Patativa do Assaré – Ave poesia”. A estréia será em Fortaleza no dia 3 de março, no cinema do North Shopping, depois entra em cartaz no Cine Unibanco, do Dragão do Mar. A partir de abril, o filme será lançado nas principais capitais brasileiras, em salas de cinema de arte e em cineclubes de todo o País. No segundo semestre, lançaremos também o DVD do filme, incluindo extras com Patativa recitando poemas e uma das visitas que ele faz à casa do meu pai, onde conta piadas, relembra cantorias e conta causos.
Este filme foi construído ao longo de 30 anos. Na raiz de tudo, está a minha amizade com Patativa do Assaré, que é meu compadre e já era meu ídolo, desde o meu tempo de meninice. Acompanhei de perto a sua trajetória, a sua luta, os seus grandes embates políticos, a sua ascensão como um grande nome da cultura brasileira. Depois editei alguns dos seus livros, produzi alguns dos discos e recitais dele. Durante todo esse período, registrei a vida e as aparições artísticas do mestre, em cinema e vídeo. Embora, antes, eu tenha feito, com Jefferson de Albuquerque Jr, um curta-metragem sobre Patativa, a idéia de fazer um longa-metragem me surgiu de forma muito afetiva. A idéia surgiu com a sua morte, como se o filme, a nível simbólico, pudesse ser a sua ressurreição. Nos últimos anos da vida de Patativa, por conta das minhas viagens, pelo Brasil e pelo exterior, praticamente não via mais meu compadre. E não pude visitá-lo, quando ele já estava doente, antes da sua morte. Eu soube da morte dele por meio de um telefonema de seu filho, mas a morte dele não me chegou como uma verdade definitiva. Patativa já era uma espécie de “mito popular”, e eu não podia conceber a sua morte. Ele morreu, e eu disse: “não morreu, porque eu não vi”. Como eu estava viajando, dei instruções a uma equipe para que gravasse os funerais. Depois, revendo esse material, vi que Patativa estava morto. E isso me abalou profundamente. Fiquei muito emocionado. Durante anos, eu não quis mexer nesse material. Eu tinha dezenas de horas de material gravado, mas não queria me debruçar sobre essa memória, esses sons e essas imagens, pois isso seria mergulhar em boa parte da minha vida, tantas eram as coisas que estavam ligadas a mim, aos momentos que vivera. Um dia, resolvi me debruçar sobre esse material.


12. O que você pretende fazer com o tanto de material que ainda guarda do poeta?


R – Alguns poemas serão autorados no DVD duplo que lançaremos. Com o material sonoro, vou preparar alguns projetos de CD e doar para o “Memorial Patativa do Assaré”, juntamente com as matrizes dos DVDs. Agora o acervo como um todo irá para o Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, que tem condições de guarda e manutenção deste material, passando a integrar o patrimônio do povo brasileiro. Distribuirei cópias do filme por algumas cinematecas da Europa e da América Latina, de tal forma que este material possa ser preservado para a posteridade. Patativa é um tesouro do povo brasileiro, e todo este acervo pertencerá à nação brasileira. Gostaria de deixar este acervo no Ceará, mas não encontramos interesse e nem mesmo temos condições técnicas de armazenamento deste material sensível. Mesmo com todo o cuidado e com o alto custo de manutenção, algumas fitas já estão se deteriorando. É urgente eu enviar este material para o Arquivo Nacional, estou catalogando o material para fazer isto. O Ceará não gosta de memória. Nomes como Cristiano Câmara e Nirez são raras exceções. Estes homens fazem um trabalho extraordinário pela preservação da nossa cultura. São os guardiões da alma cearense, mereceriam estátuas em praças públicas, ainda em vida.


13. Rosemberg, você considera que a memória do Patativa está sendo valorizada para além do caráter político e institucional?


R – Bem, eu tenho uma opinião muito particular sobre a obra de Patativa, no que diz respeito ao seu uso. Acho que o Estado do Ceará devia fazer um acordo com os herdeiros patrimoniais da obra de Patativa, pagar por estes direitos, uma quantia justa, ficando com a guarda e depois disponibilizando esta obra como patrimônio público, para que todos pudessem gravar as suas canções, para que seus cordéis fossem reeditados nas feiras de Juazeiro, para que seus livros circulassem livremente. De interessante, neste momento, vejo o uso da internet e a imensa quantidade de poemas, imagens e fotos de Patativa que circulam na web, temos até mesmo blog na Itália, com seus poemas traduzidos para o italiano. Há também uma apropriação por jovens artistas nordestinos. Tudo isto é muito bom, tudo isto é bem saudável. É por este motivo que eu penso em disponibilizar o material que tenho sobre Patativa para o Arquivo Nacional, junto com todos os outros materiais que tenho sobre cultura popular do Ceará. Esse tesouro deve pertencer ao povo brasileiro. É claro que, pelas leis atuais, qualquer uso deste material só poderá ser feito com autorização da família de Patativa.


14. Como você pensou a montagem do filme? Em que momento, os depoimentos passaram a ganhar forma? Eles estavam no roteiro desde o início?


R – Eu filmava e registrava Patativa com o que tinha nas mãos, nos diversos períodos, em que convivemos. Eu usei Super-8, filme 16mm, Vídeo U-matic, Betacam, Vídeo digital etc. Fui acompanhando a revolução tecnológica. Isso resultou em um importante acervo sobre a memória desse grande artista brasileiro. Terminei por fazer um longa-metragem, mas acontece que Patativa é de uma grandeza que não cabe em um só filme. Muitos outros filmes, com certeza, virão, mesmo que sejam realizados por outros cineastas. O material que tenho sobre ele possibilitará outras abordagens, como a relação de Patativa do Assaré com a natureza. Ele sempre foi um grande defensor da natureza. Quando estamos montando um filme, é sempre uma coisa arbitrária escolher um poema e não outro etc. As entrevistas também foram assim, mesmo as que estavam no roteiro foram cortadas ou refeitas, ou foram acrescentadas. Muita coisa importante fica de fora. Ficaram de fora cenas do cotidiano dele com a família, ele fazendo brincadeiras com os netos, fazendo poesia pros amigos, fazendo versos engraçados. Há coisas interessantíssimas. Foi muito difícil montar este filme. Passei quase três anos mexendo nesse material. Montando e remontando. E, num primeiro momento, fiz um filme imenso, com cincos horas de duração. Na verdade, fiz um seriado de cinco filmes, cada um relatando 20 anos da vida do poeta e dos principais acontecimentos históricos, que eram revistos a partir da poesia e da vida dele. E fazia experimentação de linguagem. Mas depois eu compreendi que o melhor pra esse filme era ser singelo, que o filme devia ser apenas um suporte para que o próprio Patativa se revelasse.


15. O filme tem pelo menos dois momentos que simulam um final, mas o documentário segue. Você fez alterações no final do filme?


R – Depois que o filme ficou pronto, não fiz alterações. A idéia é terminar como uma coisa cíclica, a criança do final é a mesma do ritual da morte do início. O legal deste filme é que a estrela do filme é Patativa, não é o filme ou o seu diretor. O filme é apenas um “cavalo” para manifestação do Orixá. O filme é um jangadinha carregando um monstro sagrado, quando talvez fosse preciso um transatlântico. Acho que nisto reside a importância do filme. Eu diria que o filme é quase uma conversa daquelas de calçada. Antigamente, no sertão, o pessoal botava as cadeiras na calçada à espera da fresca do vento de Aracati. O filme é isso, uma conversa sobre um homem de grande arte e de grande generosidade. Espero que as pessoas entendam assim. Que percebam o filme como uma conversa no pé de calçada à espera do vento que sopra. Mas, ao mesmo tempo, é um filme que traz muitas inquietações políticas, que diz muito sobre quem nós somos.


16. O que é mais gratificante em Patativa do Assaré, Ave Poesia?


R – Há uma alegria que não está no filme, embora esteja ligada ao filme. Conto o causo. De todo o material que filmei com Patativa, em Super-8, na segunda metade da década de 1970, sobraram alguns fragmentos em que ele aparece com o meu filho, Petrus Cariry, seu afilhado, então com três ou quatro anos. Petrus, que também é cineasta, pegou um pequeno fragmento deste Super-8, que não usei no filme, uma cena em que Patativa o leva para uma roda gigante, e, desses poucos segundos, fez um filme curta-metragem, de 12 minutos. Este filme é surpreendente e comoveu-me muito quando o vi pela primeira vez.
A outra grande alegria, a maior, é ver o filme circular e perceber a emoção das pessoas. Quero que este filme seja visto por todo o Brasil. Estou liberando o filme para que ele siga o seu caminho, com exibições em acampamentos de sem-terra, em mostras universitárias, em bairros e favelas, em salas de arte, em cineclubes, em barcos na Amazônia para populações ribeirinhas etc. O destino desse filme é ser do povo, assim como Patativa do Assaré era um poeta do povo. É legal toda essa movimentação em torno do filme.
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Currículo resumido do diretor
Natural do município cearense de Farias Brito, nascido em 1953, Rosemberg Cariry é filósofo de formação e cineasta por vocação. Poeta com cinco livros lançados e um dos fundadores do movimento de arte e cultura Nação Cariri. Como cineasta, estreou em 1986 com o documentário O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto. No currículo, possui ainda os filmes O Caldeirão da Santa Criz do Deserto (1985), A Saga do Guerreiro Alumioso (1993), Corisco e Dadá (1995), A TV e o Ser-Tão (1999), Pedro Oliveira, o Cego que Viu o Mar (1999); Juazeiro, a Nova Jerusalém (1999); Lua Cambará - Nas Escadarias do Palácio (2002), Cine Tapuia (2006) e Siri-Ará (2008). É proprietário da Cariri Filmes, empresa especializada em produções audiovisuais. Atualmente é presidente do Congresso Brasileiro de Cinema – CBC.

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sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009



JORNAL – DIÁRIO DO NORDESTE

Fortaleza, 03 de junho de 2007
O poeta e o cineasta


Rosemberg: da proximidade, quase intimidade, com o poeta popular, nasceu o filme ´Patativa do Assaré – Ave Poesia´ (Foto: Gustavo Pellizzon) As imagens de um tempo passado, de quando o poeta popular Patativa do Assaré ainda não tinha a dimensão atual - e apenas encantava a própria comunidade - são trazidas pelas lentes do cineasta Rosemberg Cariry, do filme “Patativa do Assaré – Ave Poesia”. Cariry revela momentos únicos na vida do poeta e nesta entrevista lembra como foi todo o processo de construção do filme a ser exibido no 17° Cine Ceará, amanhã, no Centro Cultural Sesc Luiz Severiano Ribeiro


Como foi a primeira dessas gravações com o Patativa, que resultou no filme?


A primeira vez que filmamos foi em Assaré, por volta de 79, fotografado em super 8, pelo Jackson Bantim e o Luís Carlos Salatiel. Registramos o cotidiano dele, na roça, Dona Belinha cozinhando... Quando cheguei lá, era um amigo que estava chegando, era o filho de Zé Moura, que já tinha laços afetivos fortes. Passamos uma semana com ele dessa primeira vez, e o que me lembro era do cheiro do inverno na terra. O flamboyant, ele sentado naquela raiz, que virou quase um símbolo depois do Patativa, do homem enraizado. Foi a época em que ele foi homenageado pela SBPC, reconhecimento pioneiro de um poeta popular. E nós fizemos um grande show no Theatro José de Alencar, chamado “Canta Cariri”, e um recital do Patativa. Documentamos em super 8 o encontro dele com toda a geração ligada ao movimento de esquerda que na época se aproximou muito do Patativa. Ele virou uma voz. A gente acreditava que as nações tinham seus poetas, Neruda, Maiakovski... E a gente achava que o Patativa era esse poeta da expressão nacional, ou pelo menos nordestina.


Em todas essas ocasiões, você foi acumulando material de gravação...


É, e esse material ficou aí durante muito tempo. Depois eu me debrucei sobre acervos particulares, públicos, de TVs. Acho que Patativa foi uma das figuras mais fotografadas, filmadas e documentadas das artes do Ceará, as pessoas faziam verdadeiras romarias à casa do Patativa. Tanto que ele não morreu só, morreu cercado pelo povo. Eram ônibus e mais ônibus, todo mundo queria ver o Patativa, queria uma foto com ele. Todo mundo tem uma história do Patativa pra contar, um verso pra dizer. Foi o poeta de expressão popular.


Ao longo dos anos, foram tantas tentativas de apreender o que seria Patativa, pelo olhar sociológico, antropológico, político, lírico... De que forma você avaliou que faltava ele ser mostrado?


Eu acho que o Patativa é isso mesmo e vai ser sempre assim: um poeta de uma grandeza tamanha que vai ter sempre múltiplas interpretações. A compreensão ecológica, o poeta extraordinário, de enorme sensibilidade no trato com a compreensão da alma humana, o cronista dos costumes do sertão... Há uma representação do Patativa, que é muito dura, concreta, de quem viveu aquilo tudo, mas há uma outra dimensão mais interna, de quem viveu dentro do sertão e teve o sertão dentro de si. E há o poema dele que diz que as almas boas ficam pela terra, fazendo caracol sobre o sertão, levantando a poeira dessa terra. Uma forma telúrica e ao mesmo tempo cósmica. Agora, uma dimensão pouco conhecida é a do Patativa religioso. Ele tinha noção, muito consciente, da grandeza da sua arte. Sempre se considerou, de certa forma, um instrumento de Deus. É como se fosse apenas um instrumento de uma vontade muito maior. “O poeta é sobrenaturá”... Daí a humildade.


Tendo tanto material, e um material de um ponto de vista tão privilegiado, por que a opção de deixar o filme com não mais que 80 minutos?


Montei cinco episódios de uma hora cada. Então é um filme de cinco horas, dividido da seguinte forma: décadas de 10 e 20 num filme, 30 e 40 noutro, e assim por diante, de modo que abordo os grandes acontecimentos do século XX a partir da poética e da visão do Patativa. É possível que depois esse material, que é mais experimental, tenha uma circulação de TV. Resolvi fazer o filme de 80 minutos por conta da possibilidade das pessoas verem em salas de cinema, universidades. Não tive a preocupação de montar um filme de grandes exercícios estéticos. Deixei o cineasta um pouco mais de lado, deixando que o filme fosse o suporte da grandeza, com a mesma simplicidade, singeleza e força - o que é uma pretensão muito grande. Mas a idéia foi essa. Mostro praticamente toda a história da década de 60 e 70, até a redemocratização, e redimensiono a partir da poesia do Patativa: Figueiredo, Médici , a Transamazôncia, essas coisas. Tem toda uma leitura política. Estou terminando ainda esse material mais extenso. Na verdade, todo o meu acervo do Patativa, que somado deve ter mais de 100 horas de gravação, eu vou disponibilizar pro Estado. Quero que se transforme num patrimônio público.

Dentro de todas essas possibilidades, qual foi o seu critério para esse filme?

Quando o Patativa morreu, eu estava viajando. E a notícia na mídia foi fria. “Patativa morreu”. Um poeta como Patativa não morre. Ele já estava num processo de transformação em mito. Eu pedi a um pessoal que documentasse o velório. Durante muito tempo, eu não quis ver essas imagens, porque foi realmente uma dor profunda, ver a imagem do Patativa morto. Ao mesmo tempo, era uma imagem importante, uma virtualidade. E foi essa virtualidade que me levou à compreensão de uma coisa concreta: a morte, a finitude. Aí resolvi começar o filme com um redemoinho no sertão, até a poeira secar, como se fosse o espírito. A partir daí a gente passa pro velório, e Patativa recita como se estivesse vivo. E daí contamos a vida dele. E termino o filme com uma criança andando na vastidão do sertão, ele dizendo como foi que nasceu, em que ano, no poema chamado “Autobiografia”, em que ele diz que aprendeu tudo quanto sabia lendo aquele livro da natureza. Essa é uma imagem muito forte, porque não se vê nada ali. E ele viu tudo.


Que outros aspectos da vida dele estão presentes no filme?


Tem um depoimento que ele fala da importância das crianças pra vida dele. E a partir daí passo pelas ligas camponesas, pelo movimento de luta pela reforma agrária. Consegui depoimentos de pessoas que estavam no Partido Comunista, falam sobre os jornais comunistas que ele lia. De certa forma, mostro um outro lado do Patativa que é um pouco nebuloso, essa ligação um pouco clandestina com o movimento sindical. Tem um momento dele dizendo que já tinha lido Max. Isso não quer dizer muito, mas é curioso. Porque a poesia dele é maior que uma dimensão política no sentido doutrinário. A política dele é muito maior, o homem, a terra, o direito à felicidade. Tem que se compreender que mesmo nossa geração querendo um Patativa socialista, ele era esse socialista. Mas era um socialista cristão.


Com todo interesse da mídia, Patativa certamente não ficou imune ao assédio. Como é que ele lidava com o fato de ter uma câmera à frente?


Ele agia com muita naturalidade. Os nossos diálogos terminavam sendo conversas, e o que é interessante é que nessas conversas ele revelava muitas coisas, tanto sobre política, quanto coisas engraçadas, coisas sobre amigos... Agora, com relação à mídia, é tamanha sagacidade de Patativa, que ele sempre teve a mídia como instrumento. Eu não acho que Patativa foi usado pela mídia; acho que ele usou a mídia muito bem. Ele sabia sempre fazer, colocar na pena do jornalista aquilo que ele queria dizer. Sabia que jornal era, como era, que tendência tinha, e que recado ele queria mandar. Sabia muito bem onde estava pisando. De tal forma que a imagem pública do Patativa é de certa forma construída. Ele sabia o que era o Patativa público e o que era ele mesmo.


Mas você sentia uma diferença ao ligar a câmara, ou você preferia apostar no documentário por um olhar pretensamente neutro, abstraindo a câmara?


No meu caso, era diferente porque eu fazia parte desse círculo de amizade, de compadrio. Eu sempre ia visitá-lo. Mas acho que sempre que iam jornalistas, imprensa, TV, ele sabia como se portar e o que dizer. E olhando os jornais de cada momento político daqueles, você percebe que ele tá passando a mensagem que ele queria direitinho.


Pra concluir, qual sua avaliação do momento do audiovisual cearense? Por que tão poucos longas estão sendo produzidos?


É até uma coisa excepcional, eu estar estreando os longas: além do Patativa, o “Cine Tapuia”, que é mais um filme meu que termina nessa pergunta, de quem somos, qual a nossa identidade. Tem a Myrlla Muniz, Rodger Rogério, uma homenagem também que faço ao Cego Aderaldo. Acho que cinema virou uma cosia de seleção da vida e uma forma generosa de homenagear pessoas que considero importantes. Dedico o filme ao Nelson Pereira, inclusive. Mas tive muita dificuldade pra fazer, passeis seis, sete anos pra fazer. Estamos num momento muito difícil no Ceará. Já fomos o terceiro pólo produtor, e fomos retrocedendo e retrocedendo a ponto de, durante a gestão da Cláudia (Leitão, secretária de Cultura do Governo do Estado durante a gestão Lúcio Alcântara, de 2003 a 2006), ter se tornado uma coisa realmente desastrosa. Ter acabado o Instituto Dragão do Mar, com a efervescência que havia do audiovisual, o longa-metragem praticamente desaparece. Enquanto isso, Pernambuco deu um salto, a Bahia chegou e também saltou, estão falando em um pólo de 100 milhões por ano pra produção, Pernambuco está fazendo 10 longas por ano. E o Ceará, que começou a conquistar um espaço nacional e internacional, com vários prêmios, que não se cria de uma hora pra outra, leva tempo e amadurecimento, tem que recomeçar do zero. É uma coisa muito dolorosa. O nosso cinema é um espelho quebrado.

(DALWTON MOURA – Repórter)

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Portal VERMELHO
4 DE JUNHO DE 2007 - 08h39
Rosemberg Cariry - O poeta e o cineasta


As imagens de um tempo passado, de quando o poeta popular Patativa do Assaré ainda não tinha a dimensão atual - e apenas encantava a própria comunidade - são trazidas pelas lentes do cineasta Rosemberg Cariry, do filme “Patativa do Assaré – Ave Poesia”. Cariry revela momentos únicos na vida do poeta e fala sobre como foi todo o processo de construção do filme a ser exibido no 17° Cine Ceará, hoje, no Centro Cultural Sesc Luiz Severiano Ribeiro

Cariry fala sobre Patativa do Assaré

Como foi a primeira dessas gravações com o Patativa, que resultou no filme?

A primeira vez que filmamos foi em Assaré, por volta de 79, fotografado em super 8, pelo Jackson Bantim e o Luís Carlos Salatiel. Registramos o cotidiano dele, na roça, Dona Belinha cozinhando... Quando cheguei lá, era um amigo que estava chegando, era o filho de Zé Moura, que já tinha laços afetivos fortes. Passamos uma semana com ele dessa primeira vez, e o que me lembro era do cheiro do inverno na terra. O flamboyant, ele sentado naquela raiz, que virou quase um símbolo depois do Patativa, do homem enraizado. Foi a época em que ele foi homenageado pela SBPC, reconhecimento pioneiro de um poeta popular. E nós fizemos um grande show no Theatro José de Alencar, chamado “Canta Cariri”, e um recital do Patativa. Documentamos em super 8 o encontro dele com toda a geração ligada ao movimento de esquerda que na época se aproximou muito do Patativa. Ele virou uma voz. A gente acreditava que as nações tinham seus poetas, Neruda, Maiakovski... E a gente achava que o Patativa era esse poeta da expressão nacional, ou pelo menos nordestina.

Em todas essas ocasiões, você foi acumulando material de gravação..
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É, e esse material ficou aí durante muito tempo. Depois eu me debrucei sobre acervos particulares, públicos, de TVs. Acho que Patativa foi uma das figuras mais fotografadas, filmadas e documentadas das artes do Ceará, as pessoas faziam verdadeiras romarias à casa do Patativa. Tanto que ele não morreu só, morreu cercado pelo povo. Eram ônibus e mais ônibus, todo mundo queria ver o Patativa, queria uma foto com ele. Todo mundo tem uma história do Patativa pra contar, um verso pra dizer. Foi o poeta de expressão popular.

Ao longo dos anos, foram tantas tentativas de apreender o que seria Patativa, pelo olhar sociológico, antropológico, político, lírico... De que forma você avaliou que faltava ele ser mostrado?

Eu acho que o Patativa é isso mesmo e vai ser sempre assim: um poeta de uma grandeza tamanha que vai ter sempre múltiplas interpretações. A compreensão ecológica, o poeta extraordinário, de enorme sensibilidade no trato com a compreensão da alma humana, o cronista dos costumes do sertão... Há uma representação do Patativa, que é muito dura, concreta, de quem viveu aquilo tudo, mas há uma outra dimensão mais interna, de quem viveu dentro do sertão e teve o sertão dentro de si. E há o poema dele que diz que as almas boas ficam pela terra, fazendo caracol sobre o sertão, levantando a poeira dessa terra. Uma forma telúrica e ao mesmo tempo cósmica. Agora, uma dimensão pouco conhecida é a do Patativa religioso. Ele tinha noção, muito consciente, da grandeza da sua arte. Sempre se considerou, de certa forma, um instrumento de Deus. É como se fosse apenas um instrumento de uma vontade muito maior. “O poeta é sobrenaturá”... Daí a humildade.

Tendo tanto material, e um material de um ponto de vista tão privilegiado, por que a opção de deixar o filme com não mais que 80 minutos?

Montei cinco episódios de uma hora cada. Então é um filme de cinco horas, dividido da seguinte forma: décadas de 10 e 20 num filme, 30 e 40 noutro, e assim por diante, de modo que abordo os grandes acontecimentos do século XX a partir da poética e da visão do Patativa. É possível que depois esse material, que é mais experimental, tenha uma circulação de TV. Resolvi fazer o filme de 80 minutos por conta da possibilidade das pessoas verem em salas de cinema, universidades. Não tive a preocupação de montar um filme de grandes exercícios estéticos. Deixei o cineasta um pouco mais de lado, deixando que o filme fosse o suporte da grandeza, com a mesma simplicidade, singeleza e força - o que é uma pretensão muito grande. Mas a idéia foi essa. Mostro praticamente toda a história da década de 60 e 70, até a redemocratização, e redimensiono a partir da poesia do Patativa: Figueiredo, Médici , a Transamazôncia, essas coisas. Tem toda uma leitura política. Estou terminando ainda esse material mais extenso. Na verdade, todo o meu acervo do Patativa, que somado deve ter mais de 100 horas de gravação, eu vou disponibilizar pro Estado. Quero que se transforme num patrimônio público.

Dentro de todas essas possibilidades, qual foi o seu critério para esse filme?

Quando o Patativa morreu, eu estava viajando. E a notícia na mídia foi fria. “Patativa morreu”. Um poeta como Patativa não morre. Ele já estava num processo de transformação em mito. Eu pedi a um pessoal que documentasse o velório. Durante muito tempo, eu não quis ver essas imagens, porque foi realmente uma dor profunda, ver a imagem do Patativa morto. Ao mesmo tempo, era uma imagem importante, uma virtualidade. E foi essa virtualidade que me levou à compreensão de uma coisa concreta: a morte, a finitude. Aí resolvi começar o filme com um redemoinho no sertão, até a poeira secar, como se fosse o espírito. A partir daí a gente passa pro velório, e Patativa recita como se estivesse vivo. E daí contamos a vida dele. E termino o filme com uma criança andando na vastidão do sertão, ele dizendo como foi que nasceu, em que ano, no poema chamado “Autobiografia”, em que ele diz que aprendeu tudo quanto sabia lendo aquele livro da natureza. Essa é uma imagem muito forte, porque não se vê nada ali. E ele viu tudo.

Que outros aspectos da vida dele estão presentes no filme?

Tem um depoimento que ele fala da importância das crianças pra vida dele. E a partir daí passo pelas ligas camponesas, pelo movimento de luta pela reforma agrária. Consegui depoimentos de pessoas que estavam no Partido Comunista, falam sobre os jornais comunistas que ele lia. De certa forma, mostro um outro lado do Patativa que é um pouco nebuloso, essa ligação um pouco clandestina com o movimento sindical. Tem um momento dele dizendo que já tinha lido Marx. Isso não quer dizer muito, mas é curioso. Porque a poesia dele é maior que uma dimensão política no sentido doutrinário. A política dele é muito maior, o homem, a terra, o direito à felicidade. Tem que se compreender que mesmo nossa geração querendo um Patativa socialista, ele era esse socialista. Mas era um socialista cristão.

Com todo interesse da mídia, Patativa certamente não ficou imune ao assédio. Como é que ele lidava com o fato de ter uma câmera à frente?

Ele agia com muita naturalidade. Os nossos diálogos terminavam sendo conversas, e o que é interessante é que nessas conversas ele revelava muitas coisas, tanto sobre política, quanto coisas engraçadas, coisas sobre amigos... Agora, com relação à mídia, é tamanha sagacidade de Patativa, que ele sempre teve a mídia como instrumento. Eu não acho que Patativa foi usado pela mídia; acho que ele usou a mídia muito bem. Ele sabia sempre fazer, colocar na pena do jornalista aquilo que ele queria dizer. Sabia que jornal era, como era, que tendência tinha, e que recado ele queria mandar. Sabia muito bem onde estava pisando. De tal forma que a imagem pública do Patativa é de certa forma construída. Ele sabia o que era o Patativa público e o que era ele mesmo.

Mas você sentia uma diferença ao ligar a câmera, ou você preferia apostar no documentário por um olhar pretensamente neutro, abstraindo a câmera?

No meu caso, era diferente porque eu fazia parte desse círculo de amizade, de compadrio. Eu sempre ia visitá-lo. Mas acho que sempre que iam jornalistas, imprensa, TV, ele sabia como se portar e o que dizer. E olhando os jornais de cada momento político daqueles, você percebe que ele tá passando a mensagem que ele queria direitinho.

Pra concluir, qual sua avaliação do momento do audiovisual cearense? Por que tão poucos longas estão sendo produzidos?

É até uma coisa excepcional, eu estar estreando os longas: além do Patativa, o “Cine Tapuia”, que é mais um filme meu que termina nessa pergunta, de quem somos, qual a nossa identidade. Tem a Myrlla Muniz, Rodger Rogério, uma homenagem também que faço ao Cego Aderaldo. Acho que cinema virou uma cosia de seleção da vida e uma forma generosa de homenagear pessoas que considero importantes. Dedico o filme ao Nelson Pereira, inclusive. Mas tive muita dificuldade pra fazer, passeis seis, sete anos pra fazer. Estamos num momento muito difícil no Ceará. Já fomos o terceiro pólo produtor, e fomos retrocedendo e retrocedendo a ponto de, durante a gestão da Cláudia (Leitão, secretária de Cultura do Governo do Estado durante a gestão Lúcio Alcântara, de 2003 a 2006), ter se tornado uma coisa realmente desastrosa. Ter acabado o Instituto Dragão do Mar, com a efervescência que havia do audiovisual, o longa-metragem praticamente desaparece. Enquanto isso, Pernambuco deu um salto, a Bahia chegou e também saltou, estão falando em um pólo de 100 milhões por ano pra produção, Pernambuco está fazendo 10 longas por ano. E o Ceará, que começou a conquistar um espaço nacional e internacional, com vários prêmios, que não se cria de uma hora pra outra, leva tempo e amadurecimento, tem que recomeçar do zero. É uma coisa muito dolorosa. O nosso cinema é um espelho quebrado.

De Fortaleza, Dalwton Moura

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Entrevista com o cineasta Rosemberg Cariry



ImprensaBR - Falemos sobre seu último filme: Patativa do Assaré – Ave Poesia. Seria necessário ser poeta também e ser ainda, acima de tudo, ou de quase tudo, nordestino para compreender Patativa, para querer falar de Patativa do Assaré, para homenageá-lo em um filme... uma figura que vive no inconsciente do povo nordestino e, de certa maneira, no inconsciente do brasileiro. Patativa afirmou sua singeleza de homem puro e criativo em sua obra inspirada principalmente na natureza da Serra de Santana, em Assaré. Nela, ele narrou a imagem do sertão e do sertanejo do Nordeste brasileiro. A geograficidade, ou seja, a forma de experimentar a existência na Terra como uma espécie de cumplicidade obrigatória, como chamou o geógrafo francês Eric Dardel, conceituando esse estado de doação e compartilhamento entre os espaços; o humano e o geográfico; foi intensamente o ponto de partida para as criações do poeta e do ser humano Patativa do Assaré. Conte sobre a idéia de fazer o longa-metragem depois de tantos anos de amizade entre você e seu personagem, o próprio Patativa.

Rosemberg Cariry – Na raiz de tudo, está a minha amizade com Patativa do Assaré, que é meu compadre e já era meu ídolo, desde o meu tempo de criança, quando ele freqüentava as feiras do Crato e ia sempre à minha casa, por conta da forte amizade com meu pai. Acompanhei de perto a sua trajetória, a sua luta por justiça, os seus grandes embates políticos, a sua ascensão como um grande nome da cultura brasileira. Depois editei alguns dos seus livros, produzi alguns dos discos e recitais. Durante todo esse período, registrei a vida e as aparições artísticas do mestre, em cinema e vídeo. Embora, antes, eu tenha feito, com Jefferson de Albuquerque Jr, um curta-metragem sobre Patativa, a idéia de fazer um longa-metragem me surgiu de forma muito afetiva. A idéia surgiu com a sua morte, como se o filme, a nível simbólico, pudesse ser a sua ressurreição. Nos últimos anos da vida de Patativa, por conta das minhas viagens, pelo Brasil e pelo exterior, eu praticamente não vi mais meu compadre. E não pude visitá-lo, quando ele já estava doente, antes da sua morte. Eu soube da morte dele por meio de um telefonema de seu filho, mas a morte dele não me chegou como uma verdade definitiva. Patativa já era uma espécie de mito popular, e eu não podia conceber a sua morte. Ele morreu, e eu disse: “não morreu, porque eu não vi” . Como eu estava viajando, dei instruções a uma equipe para que gravasse os funerais. Depois, revendo esse material, vi que Patativa estava morto. E isso me abalou profundamente. Eu chorei muito, fiquei muito emocionado. Durante anos, eu não quis mexer nesse material. Eu tinha dezenas de horas de material gravado, mas não queria me debruçar sobre essa memória, esses sons e essas imagens, pois isso seria mergulhar em boa parte da minha vida, tantas eram as coisas que estavam ligadas a mim, aos momentos que vivera. Um dia, eu resolvi me debruçar sobre esse material. E foi muito difícil. Passei quase três anos mexendo nesse material. Montando e remontando, montando e remontando. E, num primeiro momento, fiz um filme imenso, com seis horas de duração. Eu contava a história do século XX inteiro, pela história do Patativa. Na verdade, eu fiz um seriado de cinco filmes, cada um relatando 20 anos da vida do poeta e dos principais acontecimentos históricos, que eram revistos a partir da poesia e da vida dele. E fazia experimentação de linguagem. Mas depois eu compreendi que o melhor pra esse filme era ser singelo, que o filme fosse apenas um suporte para que o próprio Patativa se revelasse. Então, eu dei um nó nas minhas “pretensões de cineasta” e deixei que o filme fluísse como um rio, onde Patativa estivesse, com toda sua beleza, grandeza, de forma muito natural. Eu diria que o filme é quase uma conversa daquelas de calçada. Antigamente, no sertão, o pessoal botava as cadeiras na calçada à espera da fresca do vento de Aracati. O filme é isso, uma conversa sobre um homem de grande arte e de grande generosidade. Espero que as pessoas entendam assim. Que percebam o filme como uma conversa no pé de calçada à espera do vento que sopra. Mas, ao mesmo tempo, é um filme que traz muitas inquietações políticas, que diz muito sobre quem nós somos.

ImprensaBR - Como você relacionou o seu olhar sertanejo com o de Patativa para chegar ao esboço de uma narrativa para o filme? Qual a contribuição que você, enquanto diretor do filme, deseja dar ao povo brasileiro, ao Nordeste brasileiro quando realiza um filme como Patativa do Assaré – Ave Poesia?

Rosemberg Cariry – Eu quis, com este filme, mostrar a importância e a grandeza desse artista e cidadão brasileiro que foi o Patativa do Assaré. Esse homem, saído da pobreza, que padeceu fome e sofreu muito como roceiro, foi um autodidata, aprendeu a ler sozinho e depois leu os grandes clássicos da literatura. Um homem que levantou a sua voz como um canto generoso de denúncia e de humanidade. Quis mostrar o Patativa da roça, do povo, dos sindicatos, dos recitais estudantis, dos movimentos políticos. Esse é o Patativa que eu trago na memória e a quem presto a minha homenagem. A grande visibilidade do Patativa acontece no período que vai da década de 70 à década de 80. Ele aparece para o grande público junto com a luta pela Anistia, pelas Diretas Já. Patativa aparece no processo de redemocratização do País, como poeta de um povo, como poeta de um sonho de liberdade. Porque, naquele momento, historicamente, se necessitava de uma voz coletiva. Quase todos os países e nações do mundo têm seus poetas de expressão nacional. No Brasil, você não tem. Drummond, Mário de Andrade? Naquele momento, Patativa, pelo menos no Nordeste pobre e rebelado, surge como esse poeta de expressão se não nacional pelo menos nordestina. E aí eu fiz essa ligação consciente, porque esse é o momento em que ele publica os livros, ele viaja. Em todos os lugares do mundo, você tem Patativa falando de direitos humanos, democracia. Mas, em nenhum momento, eu me descuido de um outro Patativa, que recita versos pras crianças, com ligação afetiva com sua esposa, carinhoso com seus amigos. Mas eu quis mostrar que esse foi o auge da maturidade política e poética. É o tempo em que, pela primeira vez, uma antologia poética do Ceará o inclui. É o momento em que o roceiro pobre, o “Zé-ninguém”, é aceito pela sociedade cearense - antes era espezinhado, negado.
Realizar esse filme documentário sobre Patativa do Assaré foi não apenas desvendar a biografia e a obra de um poeta, mas também mergulhar no vasto oceano da cultura coletiva do povo nordestino e tatear os caminhos onde a história individual se encontra com o destino histórico de todo um povo. Para elaboração desse trabalho, foram pesquisadas muitas fontes escritas e da tradição oral; muitos registros audiovisuais e iconográficos. Todo esse material, rico de informações e de suportes variados, destaca a relevância da obra patativiana, o significado político dos seus atos e a sua imensa contribuição à cultura brasileira. Patativa do Assaré participou de importantes momentos políticos brasileiros: ligas camponesas, resistência à ditadura militar, campanha pela Anistia e pelas Diretas Já. Na aérea cultural, foi homenageado pela Sociedade Brasileira para Progresso da Ciência e participou ainda dos principais movimentos culturais do seu tempo: Movimento de Cultura Popular (MCP – Recife), Festivais de Música Popular Brasileira, Grupo de Arte Por Exemplo e Movimento Nação Cariri, entre tantos outros. A partir de 1970, Patativa do Assaré passou a simbolizar, para os jovens nordestinos, uma voz da resistência e das lutas democráticas. Além da imagem “oficial” do poeta, o documentário mostrará aspectos do cotidiano com a família e com os amigos, no sítio Serra de Santana e na cidade de Assaré, onde é chamado pelo nome carinhoso de “Senhorzinho”. Acredito que o filme Patativa do Assaré – Ave Poesia é uma obra importante na preservação para gerações futuras de aspectos fundamentais da vida e da obra desse poeta popular que se transformou em um patrimônio cultural e afetivo do povo brasileiro. Um dos principais objetivos é que o filme, além da exibição em salas de cinema, tenha uma grande circulação em organizações populares e seja disponibilizado para rede de TVs educativas, culturais e comunitárias.

ImprensaBR - Você tem uma extensa trajetória como cineasta. Em 1975, no Crato, já produzia seus primeiros curtas-metragens, todos documentários. Em 1980, você começa a trabalhar com cinema de maneira profissional, ainda preferindo o gênero documentário para contar suas histórias sobre o povo e a cultura do nordeste, sua terra natal. Essa influência do cenário nordestino, das sagas fantásticas do homem da seca em busca da terra prometida, a terra da água, aparece como uma assinatura sua em seus filmes, como fora desde seu primeiro longa-metragem, em 1986, “A Irmandade da Santa Cruz do Deserto”, bastante premiado e exibido fora do Brasil. Comente um pouco sobre essa unidade estética em sua obra como cineasta.

Rosemberg Cariry – É verdade, eu trago comigo essa marca do sertão, o sertão não como um local limitado, fechado, mas como terra-sem-porteira, país-do-sem-fim (como concebia Guimarães Rosa). O sertão como encontro de mundos. O Cariri cearense, por conta do movimento religioso do padre Cícero, é o grande caldeirão das culturas populares nordestinas. Eu nasci dentro deste caldeirão. Estudei em seminários, tive contato com os grandes clássicos, mas também convivi com os grandes mestres da cultura popular, os cegos rabequeiros, os cantadores, os poetas cordelistas, os artistas anônimos das feiras. Tive a felicidade de conhecer e ser amigo de grandes mestres da cultura popular. Tudo isso terminou tendo sobre mim uma influência muito forte. Meus filmes traduzem esse universo, sob uma perspectiva universal, porque, na raiz de tudo, não está apenas a região, está o homem, o homem sertanejo expressando a sua herança universal. A cultura do sertão é um encontro das principais vertentes das culturas ocidentais: temos toda uma herança ibérica (católica, judia, moçárabe), toda uma influência da cultura mediterrânea, toda uma influência de culturas africanas e ameríndias, afora os muitos povos que passaram pelo Nordeste durante o brutal processo de colonização. Meus filmes refletem esse (des)encontro de mundos. Acredito que, por muitas razões, a minha obra adquiriu esta unidade narrativa, estética e de reveladora de um universo cultural.

ImprensaBR - Seu trabalho registrando o poeta Patativa do Assaré vem desde 1978; material que, nesses 27 anos, totaliza mais de cem horas de gravação. Em uma entrevista sua, li que você registrou cenas do poeta em diversos suportes: Super-8, 16mm, 35mm, U-Martic, Betacam. Quando você começou a selecionar esse material para a realização do longa Patativa do Assaré – Ave Poesia? E o processo de montagem do filme, como foi?

Rosemberg Cariry - Eu filmava e registrava Patativa com o que tinha nas mãos, nos diversos períodos, em que convivemos. Eu usei Super 8, 16mm, Vídeo U-matic, Betacam, Vídeo digital etc. Fui acompanhado a revolução tecnológica. Isso resultou em um importante acervo sobre a memória desse grande artista brasileiro. Terminei por fazer um longa-metragem, mas acontece que Patativa é de uma grandeza que não cabe em um só filme. Muitos outros com certeza virão, mesmo que sejam realizados por outros. O material que eu tenho sobre ele possibilitará outras abordagens, como a relação de Patativa do Assaré com a natureza. Ele sempre foi um grande defensor da natureza. Quando estamos montando um filme, é sempre uma coisa arbitrária escolher um poema e não outro etc. Muita coisa importante fica de fora. Ficaram de fora cenas do cotidiano dele com a família, ele fazendo brincadeiras com os netos, fazendo poesia pros amigos, fazendo versos picarescos etc. Há coisas interessantíssimas. Acho que, de certa forma, o importante é que esse acervo vai ser disponibilizado para o Estado. Vou disponibilizar esse material para o Arquivo Nacional. São mais de 100 horas de imagem. Afora as muitas horas de áudio, narrativas e entrevistas, que eu penso em disponibilizar junto com todos os outros materiais que eu tenho sobre cultura popular. Esse tesouro deve pertencer ao povo brasileiro. Não quero a propriedade desse acervo.

ImprensaBR - O filme já esteve em vários festivais brasileiros no ano passado. Participou do 17º Cine Ceará, um festival já consolidado no estado e um dos mais importantes do Brasil, onde foi lançado oficialmente. Em quais festivais o filme já foi exibido? E como ele tem sido recebido pelo público e pela crítica?

Rosemberg Cariry – O filme Patativa do Assaré – Ave Poesia teve a sua estréia em Fortaleza, e este foi um momento de intensa emoção, com milhares de pessoas aplaudindo em pé o velho mestre. Fiquei muito emocionado com aquela manifestação. O jornal O Estado de São Paulo refere-se a este momento como “a comoção Patativa”. Foi realmente um momento muito bonito, acho que foi um dos acontecimentos mais significativos de toda a minha carreira de cineasta, nestes quase 35 anos de trabalho árduo e sem tréguas. Depois disso, o filme participou de algumas mostras de cinema no Brasil e no exterior. Agora depois da Mostra do Rio das Ostras, estou liberando o filme para que ele siga o seu próprio caminho, com exibições em acampamentos de sem-terra, em mostras universitárias, em bairros e favelas, em cineclubes etc. Haverá também, no começo do ano, exibição de cópias em 35mm em algumas salas alternativas. O destino desse filme é ser do povo, assim como Patativa do Assaré era um poeta do povo. Outro dia, encontrei cópias do filme sendo vendidas nas romarias, com capas feitas de xilogravuras, com intervenções dentro do próprio filme, um artista popular cantando um bendito que falava de Patativa e do Padre Cícero. Pensei comigo: se nós podemos realizar filmes a partir da cultura popular, por que esta mesma cultura não pode utilizar-se dos nossos filmes? Gostei do que vi. Quanto à crítica, tem sido muito positiva, já foram escritos alguns ensaios sobre o filme, e alguém me contatou recentemente querendo fazer uma tese de mestrado. É legal toda essa movimentação em torno do filme.

ImprensaBR - Como está a campanha de lançamento do filme fora do Brasil?

Rosemberg Cariry – O filme já foi traduzido para o espanhol. Estamos agora fazendo uma cuidadosa tradução do filme para o francês e o inglês. Não é fácil traduzir a poesia de Patativa, com seu dialeto caboclo. A partir destas cópias legendadas, os filme entrará no circuito de algumas televisões culturais da América Latina e participará de mostras na Europa, bem como de seminários e simpósios sobre Patativa. Em março de 2009, comemoram-se os 100 Anos de Nascimento do Poeta Patativa do Assaré. No Ceará, e em todo o País, acontecerão seminários e mostras. Vou disponibilizar o filme para todos esses eventos. É uma forma de preservação da memória do grande poeta.

ImprensaBR - Em uma entrevista concedida a um grande jornal de Fortaleza, em março do ano passado, você comentou que o filme Patativa do Assaré – Ave Poesia tem muitas chances de ser distribuído nacionalmente, por causa do interesse em torno da figura de Patativa do Assaré. "Não é um filme de grandes vôos comerciais, mas que deve despertar interesse das televisões públicas e universitárias, circular nas escolas e entrar no circuito cultural e artístico". Quando o filme chegará ao circuito comercial? Quantas cópias o filme têm e em quais estados inicialmente ele será exibido?

Rosemberg Cariry – Como eu já falei, o grande espaço do filme Patativa do Assaré será dentro dos movimentos culturais e sociais, uma coisa mais orgânica, participante da história. Além das chamadas salas de cinema de arte, o filme estará presente em cineclubes, em associações de bairros e favelas, em grêmios estudantis, em diretórios acadêmicos, em clubes de terceira idade, em movimentos dos sem-terra, em sindicatos operários, em organizações católicas sociais etc. Acho que esse é o destino do filme, ele precisa ir de encontro ao povo e ajudar na reflexão e na luta pela transformação da dolorosa realidade em que vivemos.

ImprensaBR - Como você vê a participação dos universitários e da sociedade civil no debate sobre a implantação da TV Pública?

Rosemberg Cariry – Vejo como sendo de fundamental importância. Sempre fui defensor de uma TV Pública no Brasil que fosse um espelho da nossa diversidade cultural, dos diversos brasis, da imensa criatividade do povo brasileiro. A saída do Orlando Senna da TV Brasil foi uma perda muito grande para essa visão mais generosa de uma televisão aberta, democrática e identificada com as lutas e os sonhos do povo brasileiro e latino-americano. Orlando Senna é um homem de visão larga e de grande generosidade, além de um grande senso de responsabilidade para com a nação brasileira. A sociedade civil tem que estar presente neste debate e reivindicar a democratização dos espaços. A grande luta hoje é por uma reforma no ar, que seja capaz de espalhar centenas de TVs e rádios comunitárias.

ImprensaBR - Ao afirmar que o filme deve ficar restrito aos circuitos artísticos, você insere Patativa do Assaré – Ave Poesia entre os filmes de arte ou cinema de arte. O que é necessário para que esse paradigma entre cinema comercial e cinema independente e de arte – que, muitas vezes, pode ser interpretado como um ponto negativo para a vida comercial de um filme - seja rompido?

Rosemberg Cariry – Essa divisão entre “cinema comercial” e “cinema de arte”, para mim, é uma coisa recente, imposta pelo comércio. Lembro-me que, nos anos 60, na cidade do Crato, no interior do Ceará, existiam seis cinemas, e neles nós víamos de tudo. De filmes de aventuras norte-americanos a filmes dos grandes diretores europeus, além de filmes de Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha, Carlos Manga, Paulo Gil Soares, Joaquim Pedro de Andrade, Carlos Coimbra, Anselmo Duarte, Lima Barreto, além de muitos outros diretores. Víamos O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro como víamos um faroeste ou um filme de capa e espada. Sem divisões rígidas. E digo mais: adorávamos os filmes de Glauber da fase sertânica, para nós aqueles filmes eram aventuras e encantamento. Só depois é que resolvem prender esses filmes em nichos de mercado e em rótulos obscuros.

ImprensaBR - Como, você, que, antes de lançar Patativa do Assaré - Ave e Poesia, ficou seis anos sem fazer um novo trabalho para o cinema, avalia a produção de cinema no Ceará, atualmente? Comente as iniciativas do governo para a produção local. Bahia e Pernambuco também vivem um momento especial para a produção de audiovisual. Dê sua opinião sobre este bom momento para o cinema nordestino.

Rosemberg Cariry – O Ceará forma, hoje, juntamente com Pernambuco e Bahia, um dos grandes pólos de produção do Nordeste. Temos uma produção constante que consegue uma boa visibilidade em festivais nacionais e internacionais e circula nas salas de exibição. Temos uma nova geração de realizadores que têm se destacado pela inventividade, pela ousadia estética e pela proposta de novos argumentos. Os altos e baixos, ocasionados pela política pública para a cultura, não conseguiram interromper o fluxo criativo e produtivo do cinema no Ceará e na região. Pernambuco deu um grande salto de qualidade no cinema produzido na região e a Bahia, tradicional centro produtor na década de 60, retomou o seu papel. Temos assim, no Nordeste, uma cinematografia fresca, instigante, criativa. A grande renovação do cinema brasileiro está vindo do Nordeste.

ImprensaBR - Numa visão mais ampla, em nível nacional, como, em sua avaliação, estão funcionando as iniciativas do governo federal para o fomento à indústria cinematográfica brasileira no que diz respeito à produção, distribuição, exibição e à preservação das obras audiovisuais brasileiras?

Rosemberg Cariry – Durante a gestão do ministro Gilberto Gil, com a presença de Orlando Senna na secretaria do audiovisual, tivemos um grande impulso no desenvolvimento do audiovisual brasileiro, principalmente com os programas que nacionalizavam, ou descentralizavam, a produção, redistribuindo recursos para os pólos produtivos nas regiões mais diversas, bem como incentivando festivais, mostras e seminários, em todo o território nacional. Programas como os editais para filmes longa-metragem de baixo orçamento, DOCTV e Revelando os Brasis mostraram ser de grande eficácia, com resultados muito animadores. Os convênios e a renovação de equipamentos da Cinemateca Brasileira, do Centro Técnico Audiovisual e do Arquivo Público Nacional demonstram uma preocupação com a preservação da memória audiovisual brasileira. O grande problema, no entanto, é a distribuição. Os filmes brasileiros não conseguem chegar às salas de exibição nem à televisão. A grande exceção é o Canal Brasil, que só passa filmes brasileiros e a TV Brasil, que começa também a colocar filmes brasileiros em sua grade. O novo ministro da Cultura, Juca Ferreira, com certeza, dará continuidade a essa política de descentralização e valorização do audiovisual brasileiro e estará propondo novas medidas para resolver a questão da distribuição e da exibição na TV. O ministro é um profundo conhecedor do cinema brasileiro e tentará solucionar esses problemas, acredito.

ImprensaBR - Além de cineasta, você é filósofo por formação e escritor, já tendo lançado diversos livros, inclusive com outros autores. Em sua trajetória, você sempre atuou como militante no cenário cultural do Ceará, tendo participado de movimentos culturais significativos para a história do estado e de nosso país. Sem meias palavras, Rosemberg, comente sua biografia.

Rosemberg Cariry – Sou um homem do sertão que ama as pessoas e as paisagens do mundo e tenta ser coerente consigo mesmo e com a sua herança de humanidade.

ImprensaBR - Quais seus projetos futuros?

Rosemberg Cariry – Estou me preparando para rodar um filme pelo interior do Piauí, Ceará, Paraíba e Alagoas. O projeto se chama o Auto de Lampião no Além. Inspirado no cordel A Chegada de Lampião no Inferno. O filme conta as peripécias do Circo Teatro Piripiri, a partir do Delta do Parnaíba, com seus palhaços, atores e artistas populares, perambulando por pequenas cidades e vilas dos sertões, apresentando o “Auto de Lampião no Além”. No Auto, o inferno está em crise, e Lúcifer vê-se obrigado a aliar-se ao capital financeiro internacional. Essa aliança é traduzida nas diversas formas de exploração política, social e econômica do homem. A nova desordem do mundo, por outro lado, termina por inflacionar a população de “almas condenadas” no inferno. Para piorar a situação de crise, com repercussões desastrosas para todos os setores do inferno, chega a notícia de que o bando de Lampião e Maria Bonita, escorraçado do céu por São Pedro, aproxima-se para ali se acoitar, ameaçando tocar fogo no inferno. Lampião derruba a porta do inferno e lá encontra Lúcifer e Cão Gasolina, que, tomados de pavor, se submetem ao novo governador das fornalhas tenebrosas - mas, para tanto, pretende submeter-se a uma eleição no inferno. Lampião recua de seu intento diante das tentativas de Lúcifer de fraudar o pleito, e, por sugestão do cangaceiro e cantador Zabelê, é estabelecido que a disputa se dará na forma de desafio de viola entre o próprio Zabelê e o Cão Gasolina, representante de Lúcifer. Zabelê vence o desafio. Administrar o inferno não é tarefa fácil para Lampião. Os desentendimentos com Lúcifer são constantes, e o cangaceiro decide afastá-lo de suas funções. As coisas não melhoram, até que, um dia, no inferno, aparece (em visão) o Padim Ciço orientando Lampião a retornar ao sertão nordestino. Obediente, Lampião aceita o divino apelo. A atitude do bando é encarada por Lúcifer como uma vitória, pois, como o público descobrirá depois, tudo não passa de embuste do ardiloso Cão Gasolina.
Durante a trajetória do circo pelo interior do Piauí, acontece um farsesco triângulo amoroso entre Lazarino (desabusado ator que faz o papel do Cão Gasolina), Zeferino (proprietário do circo, mulherengo e dublê de ator) e Creuza (a bonita, gostosa e libidinosa mulher de Zeferino). O picaresco Lazarino envolve-se ainda em muitas aventuras e desventuras pelo sertão, ao modo dos anti-heróis picarescos e populares da literatura de cordel, que, pela artimanha e esperteza, derrotam os ricos, os poderosos, os doutores e os padres que se colocam em seu caminho.

ImprensaBR - Como recebeu o convite para participar da 2ª Mostra do Filme Ambiental e Etnográfico de Rio das Ostras? Será a primeira vez que um filme seu será exibido publicamente na cidade, você sabia?

Rosemberg Cariry - Não,não sabia. Eu fico muito contente com o convite, com essa possibilidade de mostrar o filme Patativa do Assaré – Ave Poesia para esse novo público, em um festival que começa a se firmar pela sua relevância cultural e a sua preocupação com a diversidade cultural do povo brasileiro e com a preservação do meio ambiente. Ainda não conheço Rio das Ostras, mas já ouvi falar das suas belezas. Espero um dia conhecer este pedaço mágico do Brasil.

ImprensaBR - Qual a importância de mostras, festivais, cineclubes em cidades do interior do Brasil, onde o cinema nacional ainda só chega pelas telas da TV ou em títulos norte-americanos, levadas a salas de shoppings, nos chamados circuitões?

Rosemberg Cariry – Considero da maior importância esse crescimento de jornadas, festivais, mostras e exibições do nosso cinema nas mais diversas regiões do País... Do Oiapoque ao Chuí, dos sertões da Paraíba ao planalto central, do pantanal aos pampas, do Rio das Ostras aos Lençóis Maranhenses. Vivemos um momento privilegiado desse encontro do cinema nacional com o seu público, além dos debates, dos cursos de formação audiovisual, dos prêmios, dos incentivos. Acredito, mesmo, que essa nova onda de festivais por todo o Brasil fará surgir uma nova geração de cineastas e videoastas que alargarão os horizontes da cinematografia brasileira nas próximas décadas. Sou contra, enquanto cineasta e também diretor da Associação de Produtores e Cineastas do Norte e Nordeste - APCNN, qualquer corte nas verbas para os festivais. O que precisamos é ampliar ainda mais a realização desses festivais que passam a ter importância cultural e econômica em cada uma das regiões onde se realizam.

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Currículo resumido do diretor
Natural do município cearense de Farias Brito, nascido em 1953, Rosemberg Cariry é filósofo de formação, poeta com cinco livros lançados e um dos fundadores do movimento de arte e cultura Nação Cariri. Como cineasta, estreou em 1986 com o documentário O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto. No currículo, possui ainda os filmes A Saga do Guerreiro Alumioso (1993), Corisco e Dadá (1995), A TV e o Ser-Tão (1999), Pedro Oliveira, o Cego que Viu o Mar (1999); Juazeiro, a Nova Jerusalém (1999); Lua Cambará - Nas Escadarias do Palácio (2002), Cine Tapuia (2006) e Siri-Ará (2008). É ainda proprietário da Cariri Filmes, empresa especializada em produções audiovisuais.
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Leonor Bianchi

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Entrevista com Rosemberg Cariry



Fortaleza - 04/06/2007 - 02:41


O POVO - Aos cinco anos, ainda em Farias Brito, o senhor tremeu ao ver imagens projetadas por um cinemeiro em um velho lençol. Quais lembranças o senhor guarda da infância e de que forma ela se relaciona à sua carreira como cineasta?

Rosemberg Cariry - Uma das causas principais foi o fato de na cidade do Crato, onde eu passei a morar a partir da década de 1960, existirem muitas salas de cinema. Na época, existiam seis salas. Então, se viam muitos filmes. E o cinema era uma coisa muito presente na vida da gente. Nós vivíamos numa sociedade de transição. Com distanciamento, já se pode fazer essa análise. Era uma sociedade tradicional que começava a mudar de forma muito vertiginosa. Tanto uma transição política - por conta do golpe de 1964 -, mas também uma transformação muito profunda dos costumes. Chegava ao interior a energia de Paulo Afonso, o progresso, o consumo, a comunicação. Mas o cinema ainda tinha uma força muito grande, ainda era "a maior diversão". E nós, crianças, girávamos em torno de dois grandes pólos importantes. Um deles era a cultura popular, suas manifestações: os reisados, os congos, as festas de renovação, as bandas de pífanos dos irmãos Aniceto, a cerâmica figurativa de Dona Ciça, as cantorias de Zé Gato, a poesia de Patativa de Assaré, a rabeca de Cego Oliveira, contando suas narrativas fabulosas. E também o cinema. Então, todos nós meninos da periferia da cidade fazíamos de tudo para segurarmos algum dinheiro para ver cinema. Vendíamos cocada na rua, juntávamos cobra, alumínio na rua. Fazíamos de tudo, às vezes os pais nem sabiam, gazeávamos aula para ir ao cinema. E havia uma coisa muito interessante: representava um tesouro para a meninada os fotogramas. Normalmente ou tinha nos lixos do cinema ou se comprava dos projecionistas. Pra gente, aquilo tinha um valor muito grande, a gente fazia pequenos cinemas com caixas de sapato. Então, era uma coisa muito viva, muito lúdica. Junto com isso, nós tínhamos os contadores de história tradicionais. Eu diria que foi uma infância simples, mas muito rica sobre essa questão do imaginário, do afeto.

O POVO - Dessa emocionante cachoeira de sons e imagens até os primeiros curtas, nos anos 1970, o que aconteceu para o senhor se tornar realizador?

Rosemberg Cariry - concorria em pé de igualdade com qualquer cinema norte-americano. E tinha também no cine-educadora lá do Crato uma sessão das 16h, que era cinema de arte, digamos, onde a gente via os grandes mestres do cinema europeu. Foi uma época muito feliz para você ter vivido numa cidade do interior e ter acesso a essa informação tão diversificada. Aí nasce a vontade de fazer filme.

O POVO - Mas quando veio a profissionalização?

Rosemberg Cariry - como vai o cinema?". Eu disse: "Olhe, eu tenho um projeto assim, mas tá parado, eu não consigo porque não tem ajuda do Ceará". Ele disse: "Passa lá, que eu quero conversar contigo". E foi assim. Ele perguntou quanto eu precisava pra fazer o filme e me deu o dinheiro. Nós descemos pro sertão e fizemos esse filme. Esse filme foi muito interessante porque praticamente marca o retorno dos filmes brasileiros para os festivais internacionais. Nós viajamos mais de 12 países esse filme. Foi uma grande polêmica na época porque eram atores todos amadores, com cara do Ceará. Mas foi muito legal.

O POVO - E Para o senhor, em nível pessoal, qual a importância do Patativa na sua filmografia e na sua compreensão do mundo como artista?

Rosemberg Cariry - Rosemberg pessoal dizia: "Ah, os guias de cegos, não-sei-o-quê de aleijado".

O POVO - O Isso porque havia resistência em relação às culturas populares?

Rosemberg Cariry - Patativa roceiro, dos sindicatos, dos movimentos políticos. Esse é o Patativa que eu trago, de certa forma, na memória. E tento, nesse filme, uma singela homenagem. O Patativa é de uma grandeza tão grande que esse é só um filme, muitos om certeza virão. Mesmo porque o material que eu tenho sobre ele é muito grande. São horas e horas e horas. É sempre uma coisa arbitrária escolher um poema e não aquele etc. Tem uma cena que é o cotidiano dele com a família, ele fazendo bricandeira com os netos, fazendo poesia pros amigos, gozando. Há coisas interessantíssimas. Acho que de certa forma o importante é que esse acervo vai ser disponibilizado para o Estado. São mais de 100 horas de imagem. Eu diria que mais ainda de áudio, narrativas e entrevistas, que eu penso em disponilizar junto com todos os outros materiais que eu tenho sobre cultura popular. Para que isso fique como patrimônio do povo cearense.

O POVO - Por que o senhor decidiu se debruçar, agora, de novo sobre esse material do Patativa?

Rosemberg Cariry - A morte do Patativa... Nos últimos anos, por conta das minhas viagens ao exterior, eu praticamente não vi mais meu compadre. E não pude visitá-lo doente, antes da morte. Eu soube da morte dele, mas a morte dele não me chegou. A verdade é que não me chegou. Morreu e eu disse não morreu, porque não me chegou. E eu mandei uma equipe gravar os funerais. E eu vi que Patativa estava morto quando eu vi a imagem dele morto. E isso me abalou profundamente. Eu chorei muito, fiquei muito emocionado. Durante anos, eu não quis mexer nesse material. Mesmo porque eu sei, Patativa sempre me dizia - ele nunca tinha medo da morte, se referia como algo muito natural, tinha uma compreensão muito serena, eu diria. A passagem dele pelo mundo foi considerada quase uma missão, e a poesia seria um dom de Deus. Mas eu não quis. O debruçar sobre isso seria o debruçar sobre a minha vida. Tanta coisa que estava ligada a mim, a momentos que eu vivi. E um dia eu resolvi me debruçar sobre esse material. E foi muito difícil. Passei quase três anos mexendo nesse material. Montando e remontando, montando e remontando. E num primeiro momento fiz um filme imenso. Contava a história do século XX inteiro (risos), por meio do Patativa. Na verdade, eu fiz um seriado de cinco filmes por décadas, onde os grandes acontecimentos históricos eram interpretados pela poesia e pela vida dele. Exemplo: em 1922, a Semana de Arte; 1922 ele comprou uma viola. O Martelo Agalopado está sendo inventado no sertão. O povo inventa sua própria transformação e avanço cultural. E por aí saio interpretando muita coisa do país a partir do Patativa e do popular. E fazia experimentação de linguagem. Mas depois eu compreendi que o melhor pra esse filme era ser singelo, que só o Patativa tivesse presente. Então, eu dei um nó nas minhas pretensões de cineasta e deixei que o filme fluísse como um rio, onde Patativa estivesse com toda sua beleza, grandeza, de forma muito natural. Eu diria que é quase uma conversa daquelas de calçada. Antigamente, no sertão, o pessoal botava as cadeiras na calçada à espera da fresca do vento de Aracati. Vinha aquele vento fresco e as pessoas ficavam esperando para começar as conversas. O filme é um pouco isso também. Espero que as pessoas entendam assim. Uma conversa no pé de calçada à espera do vento que sopra. Mas, ao mesmo tempo, é um filme que traz muitas inquietações políticas, que diz muito sobre quem nós somos.

O POVO - Como o senhor falou, o Patativa é um personagem muito rico. O senhor poderia ter ido por vários caminhos, mas resolve focar o viés político do poeta. Essa escolha foi consciente, sabida desde o princípio a montagem?

Rosemberg Cariry - É uma escolha que eu vivi com ele. A grande visibilidade do Patativa acontece nesse período. Ele aparece junto com a luta pela Anistia, das Diretas Já. Patativa aparece no processo de redemocratização do País. Porque naquele momento, historicamente, se necessitava de uma voz coletiva. Quase todos os países e nações do mundo têm seus poetas de expressão nacional. No Brasil, você não tem. Drummond, Mário de Andrade? Naquele momento, Patativa, pelo menos no Nordeste pobre e rebelado, surge como esse poeta de expressão se não nacional pelo menos nordestina. E aí eu fiz essa ligação consciente, porque esse é o momento em que ele publica os livros, ele viaja. Em todos os lugares do mundo, você tem Patativa falando de direitos humanos, democracia. Mas em nenhum momento eu me descuido de um outro Patativa, que recita versos pras crianças, com ligação afetiva com sua esposa, carinhoso com seus amigos. Mas eu quis mostrar que esse foi o auge da maturidade política e poética. É o tempo em que pela primeira vez uma antologia poética do Ceará o inclui. É o momento em que o Zé-ninguém é aceito pela sociedade cearense - antes era espezinhado, negado.

O POVO - O senhor, além de cineasta, é pesquisador das culturas populares nordestinas, escritor, poeta, filósofo. Quais são as dificuldades em lidar com o tema das culturas populares sem cair na estereotipação que tanto idealiza quanto condena?

Rosemberg Cariry - Acho esse um dos grandes perigos. Acho que o que me salvou foi que a gente veio de uma geração que viveu na década de 1960 a contracultura. Tanto uma contracultura que pegava essa cultura popular, muitas vezes, como forma de protesto. Nós pegávamos o Cego Oliveira, arrastávamos da feira e levávamos pra dentro da faculdade, no Crato, e ele fazia uma cantoria inteira. E ele cuspindo no chão. Não só era uma beleza, uma riqueza, pela voz rasgada e tudo, a gente achava que ele era como os grandes músicos americanos de jazz e blues da década de 1920, 1930. E anunciávamos isso. Tínhamos isso da contestação. Jamais nós tocávamos ou nos aproximávamos disso como folclore. Eram pessoas que participavam junto com a gente de uma transformação histórica, em mesmo pé de igualdade. Eles participavam dos nossos movimentos, das nossas peças de teatro, dos nossos filmes, dos nossos livros. É uma relação, eu diria, de amor e de conflito também. Eles eram instrumentos da nossa rebeldia. Ao mesmo tempo em que nós reconhecíamos neles esse valor da ancestralidade. Aconteceu por conta da nossa formação mais acadêmica, clássica, a gente leu muito sobre as culturas européias, medievais, sobre mitologia. E começamos a descobrir nessa cultura não o que se chama de regionalismo, mas nossa possibilidade de comunicação com o mundo. Então o Cego de Oliveira, a gente encontrava esse cego cantando na Idade Média. Descobria que o Martelo Agalopado vinha dos martinetes do século XII da Península Ibérica. Ia buscar as correspondências mouriscas e magrebinas do Norte da África, nessas histórias todas. E, de repente, Cego Oliveira era nosso Homero. A poesia de Patativa era musicada pela moçada nova, da turma da gente. Era tudo muito próximo. Não era aquela coisa de um sacrário intocável da cultura popular e do folclore. Essa cultura popular foi chamada para nos ajudar num processo de transformação social que acreditávamos como possível. E, ao mesmo tempo, tinha nossa militância política.

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